Contos do corpo, 39 – Hormônios
Nesse ponto da minha vida, meu corpo começou a me boicotar. Darei exemplos. Eu estava em sala de aula, acompanhando uma aula qualquer. Matemática – para pegarmos um caso extremo. Não era fácil. Nem para mim, nem para ninguém. Por mais que me esforçasse para prestar atenção, não conseguia acompanhar o raciocínio do professor. Eu não entendia o propósito daquilo. Ele passava números de um lado para o outro da equação, fazendo contas de cabeça, seguindo regras que eu desconhecia. Achava bonito e sofisticado, como quem assiste um filme. Embora não entendesse patavina do que estava acontecendo na lousa, uma qualidade eu tinha. Era educada. Não conversava durante a explicação e também não reclamava. Ficava na minha, olhando. Muito de vez em quando eu tinha uns flashes de compreensão, quando alguma coisinha ou outra fazia sentido, mesmo que por breves segundos. O problema é que na equação seguinte a lógica se invertia, e eu me dava conta de que tinha entendido tudo errado. Ao mesmo tempo que me esforçava em silêncio, encabulada demais para erguer a mão e pedir socorro, eu tinha de administrar um outro desafio. Os meninos.
Eles se transformavam dia a dia. De meninos raquíticos para garotos bronzeados com braços musculosos e alguns fiapos de pelo no rosto. E com isso comecei a considerar a possibilidade de me casar com eles. A ideia de me casar com um menino da minha classe era tão delirante que eu não resistia. No fundo, eu tinha certeza que em questão de anos estaria casada com algum deles. Só não sabia qual. Era uma certeza tão arraigada que eu ficava com dó de mim mesma, imaginando as dificuldades de relacionamento. Eles eram tão machistas, imaturos e ignorantes. Mas o que eu podia fazer?
Eu podia me dedicar aos estudos e me esforçar mais para tirar boas notas. Isso é o que eu podia, e devia, fazer. Imagine ter de depender financeiramente dos meninos da minha classe? Seria uma vidinha sofrida, miserável até. Nenhum me inspirava a menor confiança, no sentido de terem talento e competência para conseguirem bons empregos. Eu mesma teria de me sustentar. Para ser bem honesta, a julgar pelo o que eu via em sala de aula, talvez tivesse de sustentar a família inteira. A lógica diz que, sabendo de tudo isso, o certo era me manter bem longe deles. Mas aí é que meu corpo me boicotava. Sem que eu desse por mim, quando menos percebia, estava no meio deles, conversando e dando risada das piadas idiotas que eles contavam.
Havia dois ou três que tinha o poder der fazer com que eu perdesse a fala. Eu só sorria e desviava o olhar, fingindo não estar nem aí. Depois que eles se afastavam eu tinha tremeliques. Eles invadiam meus sonhos à noite. No meio da tarde, enquanto eu fazia de tudo para me concentrar naquilo que precisava estudar, eles tomavam conta do meu pensamento. Eu me sentia possuída. Queria enxotá-los para longe, para que eu pudesse ir bem nas provas, passar no vestibular, fazer uma boa faculdade e não precisar depender de nenhum deles no futuro, mas eles eram mais fortes do que a minha vontade. Eles vinham com a força do sistema patriarcal, desde antes de Cristo. Eu abominava a tirania deles, mas não encontrava jeito de vencê-la. O poderio deles rompia todas as minhas defesas, e me atingia num nível hormonal. O pior é que eles nem faziam de propósito. Olhando friamente – nos raríssimos momentos em que eu conseguia essa lucidez – nenhum tinha charme ou lindeza que justificasse o estrago.
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4 comentários
Nossa!Adorei o conto.Você tem um jeito totalmente incrível de escrever,tão leve e simpático.Esse é com certeza,o tipo de conto que te deixa pensando…Também ri muito,principalmente no momento em que você disse que iria se casar com algum dos garotos da classe algum dia,como um destino iminente!Adorei o conto-como sempre!-e seu blog já está na minha lista de favoritos! 😉
Ps: Ah!Antes que eu esqueça,já li quase todos os seus livros e me apaixonei por eles!Perdendo Perninhas e Vendem-se Unicórnios são os meus preferido!
Beijos !
Oi, Thainara. Eba, que legal! Obrigada pelo comentário. Fiquei feliz : ))) beijinho, Índigo
Bom dia Índigo
Que bom ter vc novamente escrevendo…já estava com saudade!Foi muito doloroso abrir o blog e não encontrar novos contos.Agora esta tudo bem novamente… comecei o dia muito bem lendo e me divertindo com este conto super especial.Ótima semana com mil inspirações para nos alegrar!
Beijocas e força na peruca.
Oi, Tati. Acredite, eu também sinto falta. Mas aqui estou! bjo