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Contos do corpo, 35 – Éguas
13 de outubro de 2014
1100 visualizações

Contos do corpo, 35 – Éguas

No meio disso tudo, minha avó me deu uma mini-saia de presente. Era branca, rodada e com estampa de melancia.

– Com esses pernões que você tem, vai fazer sucesso – profetizou.

Amei a saia das melancias. Combinava com a regata branca, a preta, a verde e a vermelha. Um modelito fácil de usar, gracioso e que realçava o bronzeado das minhas pernas. Pedreiros, lixeiros, sorveteiros, pipoqueiros, cobradores de ônibus… todos aprovaram. A essa altura eu já tinha entendido que se quisesse sair de perna de fora, pagaria o preço. Eu me perguntava se seria sempre assim ou se num determinado momento eles parariam com os comentários. Claro que eu poderia vestir uma calça jeans e passar batido. Mas eu acreditava no meu direito de não morrer de calor. Além do mais, pernas sempre existiram, sempre existirão. Mostrando o meu par, eu contribuía para que todas as pernas, de todas as meninas, se tornassem uma visão tão banal e corriqueira a ponto de não gerar mais interesse algum.

E assim eu andava pela cidade, tomando ônibus, indo para a escola, para o ballet, para o inglês, aturando os efeitos colaterais enquanto remoía o meu dilema. De que adiantava aquele poderio, se eu não conseguia usá-lo para benefício próprio? Elas me levavam para onde eu bem entendesse. Eram meu corpo diplomático. Chegando ao lugar de destino, facilitavam a entrada, preparavam o ambiente para que eu recebesse o melhor acolhimento possível. Eram boas comigo. Dois cavalos portentosos. O resto cabia a mim. E daí é que eu punha tudo a perder. Eu não estava à altura delas.

Uma timidez medonha tomava conta de mim. Enquanto as duas se exibiam com toda a desenvoltura do mundo, eu abria um livro, mergulhava na narrativa e fugia para bem longe dali. Foi nessa época que comecei a ler “Brumas de Avalon”, onde as feiticeiras usavam vestidos longos, de veludo, com direito a capa esvoaçante e capuz. Podiam vestir o capuz e criar uma cabaninha própria, uma camada protetora adicional para se resguardar ainda mais contra aquele sistema patriarcal nefasto, de Rei Arthur e seu bando.  

Eu invejava as feiticeiras. Elas tinham o dom da invisibilidade. Viviam numa ilha protegida por neblina espessa, acessível apenas às escolhidas, em reclusão. E eu ali, exposta num calor de quarenta graus, na avenida mais movimentada da cidade. Eu com as minhas éguas.


2 comentários

  1. Avatar
    tatiana

    Oi

    Começo a ler e tenho que rir. Pai do céu to imaginando a mini-saia de melancia. Um dia ganhei uma tal mini saia linda e verde(cruel). Porem as pernas brancas e finas espantava toda clientela kkkkk. Quem me dera ter pernas linda…. oxalá já imaginou o sucesso kkkkkk? Espero as cenas dos próximos capítulos.

    1. Avatar

      Há. O melhor de escrever é conhecer as histórias correspondentes. Adoro as suas. beijo da velha amiga, Ì

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