Contos do corpo, 22 – Elastiquinhos
Uma semana depois da introdução do sutiã, o dentista decidiu que podíamos tirar o cabresto e partir para a segunda etapa do tratamento.
– Não preciso mais usar o cabresto? – perguntei.
Ele odiava esse termo. Ele tinha outro nome para cabresto, um nome que eu nem lembro.
– Não – ele respondeu num tom seco, e jogou o cabresto numa bacia de metal igual às usadas pelos cirurgiões, depois que eles extraem um rim.
Ele explicou que dali em diante eu usaria elastiquinhos. No diminutivo. Pediu que eu escolhesse uma cor. Os elastiquinhos ficavam alinhados numa vareta, feito bala. Achei lúdico. Escolher uma cor, imagine…
Escolhi vermelho. Poderia ter escolhido azul, verde ou lilás. Nem pensei direito. Estava tão feliz com a perspectiva de ter um rosto comum, desobstruído… Aquilo mudava tudo na minha vida. Ele não fazia ideia do que aquilo representava para mim. Eu achava que esse dia não chegaria nunca.
Nem senti a dor do resto do procedimento. Quer dizer, senti, mas não me importei. O importante é que eu tinha, finalmente, recebido minha carta de alforria. Aquela era a derradeira prova do equilíbrio do universo. Tendo me rendido à pressão do sutiã, conquistei a alforria do cabresto. Enquanto ele fazia o que tinha de fazer com os ferros acoplados aos meus dentes, imaginei como seria minha vida dali em diante. Seria normal. Normalidade era tudo o que eu mais desejava nesse ponto.
– Estou quase terminando – ele disse.
Lágrimas escorriam pelo meu rosto, por causa da dor. Não que eu sofresse. Eu estava acostumada com aos procedimentos. Apenas não conseguia segurar as lágrimas. Era uma reação natural do corpo. Não era muito pior que as sessões de alongamento do ballet ou a aula de educação física.
– Agora é só amarrar.
Ele separou oito elastiquinhos vermelhos.
– Morde.
Fechei a boca e o dentista começou a prender os dentes de cima aos de baixo.
– Vou te mostrar como é que faz.
Ele pegou um espelho de mão. Pediu que eu segurasse e mostrou.
Os elastiquinhos, na verdade, eram a linha e meus dentes o “tecido”. Eu faria uma sequência de pontos-cruz, prendendo os dentes de cima aos de baixo e vice-versa, de modo que, ao final, ficasse impossível abrir a boca.
– Entendeu como é? – ele perguntou.
Fiz que sim com a cabeça.
– Você vai usar esses elásticos direto. De dia e de noite. Só tira pra comer e escovar os dentes.
Assenti.
– Alguma dúvida?
Pensei em perguntar o que eu deveria fazer caso tivesse de abrir a boca para falar.
– Tudo bem, então – ele disse, com um sorriso camarada. – Nos vemos daqui a quinze dias.
Tirou as luvas e se levantou da cadeira. Abriu a porta para mim.
Ergui a mão e acenei tchau.
– Boa sorte! – ele respondeu.
E fechou a porta.
2 comentários
Boa tarde Indigo
Para descontrair um pouco sentei para ler mais um de seus contos e como sempre foi muito bom…lembro sempre de alguma situação vivida. Desta vez lembrei quando o João colocou os tais elasticos nos dente. Ele sempre muito falante chegou na vó Isabel e começou a falar muito mais com dificuldade (durante o 1º jogo do brasil. Os tios já estavam “passados” com tanto falatorio ai o tal João (meu filho) solta a perola: Vou tirar os elasticos porque estou com vontade de falar um pouco. Nossaaaaa foi muito divertido e todo mundo riu…..ele ficou sem entender.
Por este motivo que amo ler seus contos, seus livros, enfim….eles me fazem sempre lembrar de algumas situações vividas. É ótimo, sem palavras.
Oi, Tati. Só quem foi aprisionado por esses elastiquinhos entende.. João é dos meus. Um sobrevivente. Beijoca!