A grande metamorfose
Para você que chegou agora: desde o comecinho de janeiro estou reproduzindo (em formato de prosa) “Metamorfoses” do poeta Ovídio, acrescentando meus pitacos. Em itálico, as palavras originais. Abaixo, meus comentários.
Alguns infelizes buscaram abrigo no alto das colinas. Outros, em algum pequeno bote, remando onde costumavam arar, e foram navegando assim por sobre seus campos de grãos ou por sobre as chaminés daquilo que uma vez fora suas casas. Alguns conseguiam pegar algum peixe na copa de um olmo, o jogar a âncora de uma draga em alguma campina verde, ou prender a quilha da barca em alguma videira soterrada pela água. Carcaças de animais boiavam onde antes eles mordiscavam a grama macia, e as Nereides vieram nadar, curiosas para verem, embaixo da água, casas, cidades, parques e bosques. Os golfinhos invadiram as florestas e se enroscaram nos carvalhos. O lobo nadou com o carneiro; e o leão e o tigre flutuaram juntos. O javali descobriu que sua força era inútil, e o cervo não conseguiu vencer a torrente. Pássaros sem rumo buscaram ao longe, em vão, vislumbrar um pedaço de terra, e tombaram exaustos, no mar. A profunda indisciplina das profundezas aquáticas soterrou todas as coisas, e as ondas arremeteram-se contra o topo das montanhas. A inundação tomou todas as coisas, ou quase todas, e aquelas cuja água, por algum motivo, poupou, acabaram conquistadas lentamente pela inanição.
Talvez essa seja a primeira mega metamorfose das muitas que Ovídio narra em seu livro. Nesse caso, não de um deus, ou homem ou animal, mas do mundo mesmo. É triste. Nós lamentamos pela destruição, pelas perdas, mas de que outro jeito conseguiríamos mudar, eliminando o ruim para dar espaço para algo melhor? Se, nas nossas vidinhas, fazemos isso o tempo todo, por que Júpiter não poderia fazer o mesmo? Afinal, o que é uma faxina, uma mudança de casa, uma visita ao barbeiro?